A bicontinentalidade do Brasil: os laços com a África


Um olhar atento é o suficiente para se constatar a bicontinentalidade brasileira. Pelo menos a possibilidade da mesma. Geograficamente, a costa nacional "encaixa-se" perfeitamente ao litoral atlântico africano, mesmo após milhões de anos de separação das placas tectônicas, fenômeno esse que ainda está em curso. Étnica e culturalmente esta bicontinentalidade reforça-se dramaticamente pela participação radical que o negro africano teve na formação do Brasil, em boa parte tornando sua nova morada numa extensão de seu continente de origem. Sempre lembrando, claro, que isso se deu através da hedionda tragédia humana da escravidão e do abjeto tráfico secular de pessoas pelo Oceano Atlântico. Importante ressaltar a consciência histórica que o tema exige, principalmente visando as devidas correções sociais e políticas que formam talvez o maior desafio nacional, além de uma pendência secular, que se manifesta principalmente através da brutal desigualdade e do racismo que muitas vezes assume formas das mais perversas. A cultura afrodescendente permeia a todos os brasileiros, invariavelmente. A grande maioria da população brasileira possui algum ancestral africano. Mesmo a expressiva minoria de brasileiros propriamente negros, ou seja, com uma fisionomia claramente africana, formam a maior população negra fora da África. Contudo, se esses pontos ainda não são suficientes para corroborar a presente tese, acrescentemos então o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, na qual o autor defende a bicontinentalidade da própria Portugal, também não apenas por razões

geográficas, mas pelo papel formativo que povos do outro lado do Mediterrâneo como os mouros, berberes e judeus, entre vários outros, tiveram na nação portuguesa, dando-a uma identidade híbrida. Fatores que, segundo o mesmo, influenciaram radicalmente o modo de ser do colonizador e explorador português mundo afora, principalmente onde se extendeu a maior parte do império ultramarino luso, nos séculos XV e XVI, que foram virtualmente todo o litoral tropical de ambas África e Ásia. Vejamos que interessante o quanto fenômenos históricos, aliados à peculiaridades geográficas, podem projetar um país, originalmente de uma determinada região, para uma jornada geopolítica extraordinária e inesperada. No caso de Portugal, o pequeno país passou a ter como realidade próxima, muito mais os trópicos do planeta que o circuito europeu.


A presente tese tem base também em diferentes projetos nacionais fundamentados numa consciência geopolítica complexa. Pois não existe projeto de país autenticamente soberano sem uma clara agenda geopolítica. A base física da nação é o território, e o território é vivo e evolui projetando-se. Não estou falando de anexação de mais território, mas a projeção, em todas as dimensões possíveis, como novas
parcerias e compartilhamento de objetivos com outros entes soberanos. A Rússia vem consolidando seu projeto geopolítico no âmbito da Eurásia, ou seja um projeto explicitamente bicontinental. Como a própria Rússia, tendo seu território maior parte na Ásia e o restante na Europa, a Turquia, outro país que possui território literalmente bicontinental entre Europa e Ásia, apesar da fração europeia ser ínfima,
nela se situa a cidade turca mais importante econômica, demográfica e historicamente, Istambul (antiga Constantinopla). O Império Otomano, por sua vez, extendeu-se entre Ásia, Europa e África. Ainda assim podemos conferir também uma identidade bicontinental ao antigo império, se considerarmos as suas parcelas africanas e asiática como sendo de um ente continental próprio, o Oriente Médio, que numa versão extendida, inclui o Norte da África, além do Sudoeste Asiático, por aquele compartilhar religião, língua, etnia e cultura com este, e não com o restante da África, a qual chama-se África Subsaariana, por situa-se abaixo do deserto do Saara. O que não impede os países árabes do norte africano de exercerem sua bicontinentalidade com todo o restante da África. A Líbia governada por Muammar Gaddafi, em seus primeiros anos buscou participar do projeto pan-arabista, de unificação de todo o mundo árabe, ao lado dos governos nacionalistas de Egito, Síria e Iraque. Atritos posteriores levaram Gaddafi a romper com o pan-arabismo e, aproveitando a bicontinentalidade de seu país,
colocar-se como porta-voz estratégico do pan-africanismo. O Brasil, como fez a Líbia, deve aproveitar bem sua geografia dupla, para na eventual dificuldade em promover a integração latino-americana. Devido, por exemplo, a uma interferência norte-americana agressiva em que nossos vizinhos caíam sob regimes fantoches de Washington, e hostis ao Brasil soberano, podermos buscar uma integração alternativa com os irmãos do além-Atlântico. O ponto de partida ideal para esse objetivo é justamente o Brasil ajudar a promover o pan-africanismo, e dele participar estrategicamente.

Já temos antecedentes históricos, no século XVII, tropas luso-brasileiras combateram em ambos os lados do Atlântico para expulsar os invasores holandeses (a terrível Companhia das Índias Ocidentais e seus mercenários, um protótipo das atuais corporações multinacionais) das colônias portuguesas no Nordeste brasileiro, Angola e nas ilhas de São Tomé e Príncipe. Com isso foi estabelecida uma relação transatlântica Brasil-África além dos laços econômicos coloniais e do deplorável tráfico de escravos, se firmou assim um feliz antecedente de fraternidade geopolítica e estratégica. Fica como uma janela para o futuro, aberta no passado, brasileiros cruzando o oceano para libertar seus irmãos das garras do sistema financeiro globalista de então, antes sediado em Amsterdam e hoje em Nova York. E como se não bastassem as coincidências, Nova York foi fundada pelos mesmos banqueiros e usurários do Recife holandês logo após sua expulsão de terras brasileiras! Por favor, não creiam que eu esteja idealizando o nosso período colonial, apenas comunico aqui o simbolismo que o passado nos traz para benfazejas futuras através de suas positivas inspirações. Nunca deixando de exercitar a indispensável consciência sobre os traumas do colonialismo, a espoliação, a escravidão e o extermínio. Esses antecedentes deverão ser aproveitados além dos atuais intercâmbios acadêmicos e investimentos brasileiros no continente irmão. Falando em irmãos, um outro país latino-americano empreendeu e empreende esforços para com o continente do qual também compartilha ancestralidade conosco, Cuba. Sendo muito simbólico e inspirador o feito cubano de enviar tropas em solidariedade à Etiópia e, principalmente, a então recém-independente Angola, na defesa do país contra os criminosos mercenários da CIA e o exército do regime racista da África do Sul sob o apartheid, que ameaçavam a libertação daquele povo. A operação cubana denominou-se ''Carlota'', em referência à escrava africana de mesmo nome que liderou uma rebelião na Cuba colonial do século XIX, altamente simbólico. Não poderia deixar de mencionar a participação diplomática brasileira durante todo o conflito, inclusive com o Brasil tendo a justa iniciativa de ser o primeiro país do mundo a reconhecer a independência angolana. Como se constata, existem suficientes realizações no passado que servirão de norte para as realizações do futuro.



A batalha dos Guararapes, por Victor Meirelles.


Considerando o mosaico étnico-tribal que compõe a África Subsaariana, a tese pan-africanista muito provavelmente forma a única via possível de emancipação real do grande continente irmão. Pois suas pseudo-nações modernas não passam de subprodutos do colonialismo europeu, deliberadamente concebidos para inviabilizar quaisquer projetos soberanos na África. As fronteiras foram traçadas propositalmente em desacordo com os territórios das diferentes etnias, criando futuros Estados artificiais, que levaram nas décadas recentes às famigeradas limpezas étnicas. Uma aplicação literalmente territorial da velha estratégia de dividir para conquistar. Entretanto, a criação de centenas de países minúsculos (como os bantustões no interior da África do Sul), mas compatíveis com as respectivas identidades, podem até agravar esse quadro. Microestados no mundo periférico dificilmente escapam de se tornarem presas fáceis da anarquia interna e da rapina externa (aliás, esta gera aquela). Portanto, talvez não haja outra maneira de libertação da África fora a sua união num só ente político. Coincidentemente, em nosso território amazônico vem ocorrendo um movimento espúrio e, como sempre, sob aplausos da mídia hegemônica, para a criação de Estados independentes, supostamente em nome da preservação de esparsas populações nativas em reservas indígenas. Nesse caso, fora demograficamente, esses territórios de "micro" não tem nada. Algumas reservas sozinhas tem o tamanho de países europeus inteiros, como Portugal, habitados por no máximo algumas milhares de cabeças. Reconhecendo-se sua independência, formariam países inviáveis, dependentes de "ajuda externa", da qual seus maiores incentivadores se prontificariam o quanto antes em fornecer. Seus

incentivadores, e desde já patrocinadores (através das ONGs que são fachadas de suas corporações e serviços de inteligência, principalmente), são as forças coloniais de sempre (EUA e seus fantoches inanimados), muito interessados nos minérios sob os pés dos indígenas. É infinitamente mais fácil saquear esses minérios desta forma do que tendo que arrancar diretamente do Brasil continental e unificado.

A relativa homogeneidade cultural por toda a África Subsaariana (apesar da já citada multiplicidade de pequenas etnias) torna o projeto pan-africanista realista num médio prazo. Pacificadas as dissensões inter-étnicas, e interrompida a interferência neocolonial, os principais obstáculos passam a estarem superados. A integração deve usar a seu favor, as três línguas francas que abrangem praticamente
toda a África ao sul do Saara, o francês, o inglês e o português. O último, falado em cinco países no continente, dois deles, Angola e Moçambique, são importantes, extensos, e relativamente estáveis e prósperos para os padrões africanos. Estes países lusófonos formam naturalmente a porta de entrada do Brasil na África. Angola, logo cruzando o Atlântico, será uma "cabeça-de-praia geopolítica" ao formar
uma confederação com o Brasil, tornando-se uma espécie de província além-mar, dando o ponta-pé inicial para a construção do pan-africanismo desde Brasília.


Meridionalismo


O avanço das tecnologias de transporte e comunicações vem tornando o Oceano Atlântico, que separa Brasil e África, menor do que o estreito de Gibraltar. A fraternidade Brasil-África não apenas é indispensável para a libertação definitiva de ambas as partes, como é essencial para a inadiável libertação de todo o Sul Global. Dessa forma, esse projeto insere-se na teoria do Meridionalismo, elaborada pelo professor do Departamento de Geografia da USP André Roberto Martin. O Prof. Martin defende como a melhor maneira de projeção geopolítica brasileira, uma prioridade no Sul Global, em geral, e no Hemisfério Sul, em particular. Algumas das organizações internacionais que vem contribuindo nesse sentido são os BRICS e o IBAS.

As integrações do Brasil com a América Latina, e com a África, podem e devem realizarem-se simultaneamente, tendo uma como incentivadora e propulsora da outra. Seria a melhor forma de unificar geopoliticamente o Hemisfério Sul num bloco diplomático, assim concretizando de forma prática o Meridionalismo. A teoria do Prof. Martin preconiza um fortalecimento das relações Sul-Sul através de suas características em comum como o clima tropical e a extensa massa oceânica que se estende por todo o hemisfério. Para mais informações acerca do Meridionalismo sugiro acessar o material disponível principalmente no YouTube.


Política energética


Energia é tudo. Não há melhor substituto dos combustíveis fósseis que os combustíveis renováveis fáceis de produzir nos trópicos. América Latina e África são privilegiadas nesse sentido, possuindo características que permitem produção suficiente para os mercados internos e para exportação. Os países do Sul Global inaptos a produzirem energia de fontes renováveis suficiente para seu consumo, e sem fontes de petróleo ou outras formas de energia baratas e fáceis de produzir, poderão importar os combustíveis brasileiros e africanos a preços justos, assim libertando-se das amarras psicossociais, tecnológicas e financeiras dos governos, corporações, bancos e bolsas do Norte Global.

Nesse quesito, não poderia deixar de homenagear José Walter Bautista Vidal, engenheiro, físico e idealizador do Programa Nacional do Álcool (PróAlcool), de 1975, dentre outros projetos voltados para os mais inadiáveis interesses nacionais, como o de industrialização do nióbio. Participou do PRONA, com Enéas Carneiro e Adriano Benayon, nos anos 90. Certamente, um dos maiores nomes da bibliografia dos defensores dos interesses nacionais mais legítimos. Deixo aqui uma seleção de trechos de um artigo seu, de 2007, mas atualíssimo, sobre soluções energéticas para o futuro:

''O Brasil foi o único País que teve sucesso na montagem e operação de eficiente programa nacional de substituição, com total êxito, de derivado do petróleo por combustível renovável de origem vegetal e solar. Ele é o único continente tropical, portanto com máxima potencialidade de energia solar; dispondo da maior proporção de água doce entre os países tropicais. Ademais com uma grande fronteira agrícola
de terras férteis profundas disponíveis. Detém consagrada experiência tecnológica, com centenas de produtores de álcool em plena produção e também o melhor Centro Tecnológico Agro-Industrial em operação do mundo, em Piracicaba, SP, financiado pelos produtores de álcool e açúcar.''

''Há quase meio século, o Brasil pôs em execução o único programa nacional vitorioso de substituição de derivado do petróleo, o Pró-Álcool. Como o petróleo é não renovável, a possibilidade de sua exaustão leva à guerra ou a continuadas invasões por potência militar sobre países com importantes reservas de petróleo. A principal causa para a guerra são as riquezas energéticas e só serão evitadas com a ampliação da produção de substitutos vantajosos do petróleo como são as energias renováveis tropicais, que colocam o continente latino-americano em grande vantagem mundial, ainda não aproveitadas por falta de instrumentos operativos adequados.''

''Enquanto a formação do petróleo, a partir da energia solar, depende de centenas de milhões de anos de fossili-zação, sendo portanto não renovável, o óleo de girassol, tendo também como origem a energia solar, leva apenas cerca de dois meses para se formar desde o plantio. O mesmo tempo reduzido ocorre com os demais óleos. As energias líquidas vegetais, abundantes nos trópicos, representam portanto uma antecipação de centenas de milhões de anos de uso de combustíveis de origem solar em relação aos derivados do petróleo, garantindo sua continuidade, enquanto houver sol. O Sol levará ainda uma dezena de bilhões de anos fornecendo energia até alcançar o nível máximo de entropia quando se
apagará.''

''Não basta porém a abundância de sol, é preciso também a água doce abundante para permitir a conversão da energia eletromagnética do sol em energia química de fácil produção e uso. Esta conversão é feita pela fotossíntese das plantas em reação química endotérmica natural, sem custos
adicionais, com a captação do CO2 do ar e de água doce. Formam-se então os hidratos de carbono e os óleos vegetais, a biomassa, base dos combustíveis vegetais renováveis. Cada conversor- planta – tem o seu grau de eficiência que varia por espécie vegetal. A cana de açúcar é um excelente conversor. Ela somente cresce de modo adequado dentro de determinada faixa tropical de latitudes.''

''Há grande dificuldade técnica e de custos energéticos no aproveitamento da energia diretamente do sol. Não existem tecnologias eficazes de captação e armazenamento da energia eletromagnética do sol. Esta situação ficou superada com o uso do processo de fotossíntese das plantas que converte essa energia solar em energia química de fácil produção e que resulta em combustíveis vantajosos substitutos dos derivados do petróleo. Na realidade, esses combustíveis antecipam em centenas de milhões de anos os combustíveis derivados do petróleo, tornando desnecessário o longo período de fossilização que transformam os hidratos de carbono em hidrocarbonetos pela perda do oxigênio e evita a contaminação química de fósforo, enxofre e outros ingredientes retirados dos meios em que o petróleo se forma. Entre outras inúmeras vantagens socioeconômicas e a não contribuição para o aumento de CO2 no ar, razão do efeito estufa, a ausência de produção da chuva ácida, a sua natureza essencialmente renovável, compõem um conjunto amplo de características que permitem pensar-se em um novo caminho para o processo de evolução da humanidade que depende sempre de energia superando a guerra por motivos energéticos e permitindo um longo período de crescente bem estar: “nada se move ou se transforma no universo físico sem energia”, diz o 1º Principio da termodinâmica. Este é um novo processo que permite a civilização avançar com energia “plantada”. Já recebeu a feliz designação de Civilização da Fotossíntese sustentável enquanto existir radiação solar.''

Conclusão

As oportunidades estão cada vez mais alcançáveis diante das novas circunstâncias geopolítcas que se delineam no último decênio. Os BRICS estão evoluindo de um acrônimo acadêmico para um grande bloco geopolítico de defesa do mundo periférico, estabelecendo instituições financeiras alternativas ao FMI e Banco Mundial, como é o caso do Banco dos BRICS. Dezenas de países já pleiteam sua adesão ao grupo. Os delírios da mídia pró-sistema, alucinando com uma ''Rússia cada vez mais isolada'' (como já ouvi de uma jornalista na CNN) são risíveis, por exemplo. O iminente colapso do sistema financeiro e seus principados permitirão enfim o reequilíbrio planetário numa ordem mundial muito mais harmônica. Estes principados perderam o poder que até então detinham de manipular o mundo gerando crises (sejam guerras, pandemias ou bolhas especulativas) para os fins desejados. Para isso correm desesperados atrás de bodes expiatórios, para justificar as atitudes mais insanas e suicidas possíveis. É nesse cenário, que os países dos quais recaem imensuráveis responsabilidades históricas sobre os ombros, como o Brasil, devem se posicionar e agir. Chegou a hora de encerrar o ciclo de omissão e autosabotagem. A América Latina, a África, o Sul Global, e toda a humanidade contam com isso.

P.S.: Neste momento a nossa grande África vem se levantando em revoluções nacionais para a retomada de seu destino por africanos e para os africanos, como no Mali, Burkina Faso e nessa semana, o Níger. Viva!

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